terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Utopias distópicas

A racionalidade conferiu à espécie humana o descontentamento com a imperfeição do mundo, semente que floresce no surgimento de utopias. Elas desafiam uma visão inerte e confortável do homem em relação ao mundo. Mesmo assim, a experiência histórica conduz ao ceticismo em relação à realização de projetos utópicos, que resultaram, em sua maioria, na gênese de cenários mais próximos à distopia.

Em uma França castigada pela fome e pela injustiça, os ideais de “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade” regeram a ideologia do movimento de 1789. Suas consequências deram novos significados às suas reinvindicações: a guilhotina tornou-se a materialização da “igualdade” ao punir, da mesma forma, reis e membros das camadas estamentais mais baixas. A Revolução, autofágica ao atingir seus próprios líderes, mergulhou o país europeu no caos e no terror.

Um pouco mais distante no tempo e no espaço, uma outra agitação sacudiu a Rússia em plena Primeira Guerra Mundial. Movidos pelo desejo de acabar com a pobreza e a opressão, os revolucionários bolcheviques construíram um sistema que encheu rios de sangue para ser consolidado, em uma violenta Guerra Civil. Nas mãos de Stalin, o sistema fortaleceu-se, esmagando seus opositores. Países como Cuba e China copiaram a mesma fórmula e abrigaram regimes igualmente totalitários, distantes dos ideais originais de construção de uma sociedade sem classes.

O denominador comum desses recortes do passado é a utopia transformada em barbárie. Divinizada por aqueles tentam aplicá-la ao mundo real, ela é capaz de transformar-se no seu oposto, revelando seu caráter nocivo e instituindo a destruição.

Texto baseado no tema de redação da Fuvest 2016. Disponível em http://acervo.fuvest.br/fuvest/2016/fuv2016_2fase_dia1.pdf, pág, 12

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Extinção voluntária

Man

O mundo contemporâneo já carrega em si as sementes de sua própria destruição. A civilização que agora vive e respira, despreocupada com a possibilidade de sua extinção, está com os dias contados. É uma extinção evidentemente voluntária, causada por uma patologia epidêmica crescente.

Aceitar a veracidade da existência dessa patologia é tarefa árdua. Um dos seus principais sintomas é a cegueira: o homem contemporâneo não percebe que padece de um mal corrosivo e potencialmente destrutivo para a coletividade. Seu nome é egocentrismo. Sim, tudo no mundo moderno gira em torno do “eu”, e nunca ele esteve tão forte. É politicamente incorreto admitir o egoísmo, mas é necessário. Seus desdobramentos são infinitos e perceptíveis apenas por mentes atentas e reflexivas.

O nosso mimo e ressentimento crescem a níveis incalculáveis. Uma surdez voluntariamente gradativa toma conta de nós. Aos poucos, um bando de surdos-tagarelas ambulantes tomam conta das ruas, das avenidas e do cyberespaço. Ouvir alguém é tarefa trabalhosa. Aceitar as diferenças nas concepções de mundo do outro é um ato raro. Engolir o nosso equívoco e nossas falhas é impossível: isso é uma ofensa que corrói o mais profundo da alma. Queremos apenas falar, falar e falar. Muitas vezes não temos nada a dizer, e achamos que dizemos alguma coisa.

E o que dizer senão um emaranhado de sandices? Achamo-nos inteligentes, especialistas na compreensão da complexidade da existência humana. Mas apenas relinchamos uma montanha de asneiras, um resultado de pouquíssima leitura, pouquíssima interpretação de texto e pouquíssimo ouvir. A política é um campo onde esse mal mais se manifesta. “Esquerda” e “direita” são dois conceitos vazios de sentido. A necessidade de xingar, de insultar e de desclassificar o outro esvaziaram o sentido desses complicados conceitos, e jogaram a profundidade dessas ideologias no campo da ignorância. A burrice começa a reinar absoluta.

Nossas relações com os outros tornam-se frágeis. O mundo líquido é o responsável pela sua diluição, e o motor do mundo líquido é a futilidade. Discussões idiotas e profundamente egocêntricas destroem relações dentro de famílias, amizades e casamentos. Tudo o que é sólido desmancha no mar do imediatismo. Manter relações duradouras desprende uma quantidade enorme de energia e espatifa nosso orgulho. O amor e o afeto gritam por socorro, por se afogarem nesse mar das coisas passageiras. E qualquer salva-vidas que tente trazê-los à areia do mundo é taxado de atrasado e retrógrado pelas mentes tolas.

A exigência da vida contemporânea cresce gradativamente. Queremos abraçar o mundo, transformar-nos em “super-humanos”. Por isso, prostituímos o nosso tempo, aparentemente escasso, em trabalho excessivo, cursos sobre todo o conhecimento humano acumulado desde Aristóteles e aulas de idiomas cada vez mais diversos. Movidos por uma ânsia insaciável de lucro, criamos um mercado de trabalho exigente e faminto de atributos divinos, inexistentes em seres limitados. Estar com a família, amigos, gozar de um pouco de diversão, um pouco de música, literatura e arte são tarefas de segundo plano. 

O fim se aproxima e o homem continua deitado no berço esplêndido da vida fútil e egoísta. Estamos próximos da extinção, onde estaremos presos na mísera casca de nós de nosso ego. Momento em que a vida perderá todo o sentido.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Esterilizando o Brilhantismo Literário

Library

Em mais uma de suas belas intervenções no Estado de São Paulo1, o historiador e professor da UNICAMP Leandro Karnal fez referência ao livro Incidente em Antares, de Erico Veríssimo. Referência simultaneamente oportuna e compreensível. O filho desse escritor também é colunista do mesmo jornal, o que dá mais brilho à alusão. Mesmo assim, ela motivou uma reflexão pessoal sobre um assunto um pouco distante do tratado naquela coluna.

Ao ver escrito “Incidente em Antares”, minha memória gritou. Eu tenho esse livro! Fui buscá-lo na minha pequena biblioteca pessoal. Um belo livro: grossura considerável (amo livros extensos), capa azul, título grafado em um lindo tom avermelhado e um conteúdo provavelmente enriquecedor. Mas dois aspectos visuais chamam a atenção. Um deles é o nome do autor escrito em caixa alta: Erico Veríssimo, um dos maiores escritores deste país, homenageado por Carlos Drummond de Andrade quando deixou o nosso mundo2. Outro é uma espécie de etiqueta. Branca e chamativa, nela está escrito “apoio ao saber” ao lado de uma bandeira do Estado de São Paulo. Sim, é um livro gratuitamente distribuído aos estudantes de escolas públicas estaduais. A partir daí minha reflexão viajou.

Uma metáfora bíblica soa boa para o primeiro ponto da minha reflexão. É necessário apenas reduzir seu peso retórico e sua abrangência. "Não atireis vossas pérolas aos porcos" (Mateus 7, 6), aplicada a este contexto, se tornaria "não atireis preciosidades literárias a alunos imaturos". O ato de distribuir gratuitamente livros de grandes autores como o próprio Erico Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade é altamente louvável. Livros de altíssima qualidade são entregues àqueles que não possuem condições de acesso aos mesmos, em uma boa parte dos casos. Mas será que esses alunos possuem a maturidade necessária para entender o inestimável valor daquilo que suas mãos seguram? Quantas vezes já não vi livros daqueles jogados pelas ruas! E quanto tempo demorei para entender apenas uma parcela desse valor!

A reflexão aprofunda e chega a um segundo ponto. Dias antes da mencionada epifania, assisti a uma das mais famosas intervenções midiáticas do mesmo Karnal: Hamlet de Shakespeare e o Mundo como Palco3, num programa chamado Café Filosófico. Aliás, lembro das chamadas do Café Filosófico nos intervalos comerciais da TV Cultura, durante minha infância, e do meu julgamento da possível chatice desse programa. Ledo engano: mal imaginava que iria me deliciar com as profundas reflexões despertadas por ele!

Voltando à intervenção karnaliana, naquela ocasião, um dos mais importantes intelectuais do país soltou uma frase que evidencia uma verdade nua e crua: "A escolarização do conhecimento é a esterilização do conhecimento". Em outras palavras, ao ensinar na escola grandes autores, eles perdem seu brilho. Alunos intelectualmente imaturos têm contato com preciosidades literárias inestimáveis, e as reduzem ao nível da chatice tediosa. Prova disso é a alcunha dada por muitos a Machado de Assis. O maior escritor do país é apelidado de "Mais Chato de Assis" e obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas tornam-se uma pedra no sapato dos estudantes. Em terras britânicas, Shakespeare é ensinado do mesmo método e sofre do mesmo mal. Cabe ressaltar, em um mundo onde um diploma universitário confere um status estéril ao seu possuidor, que tanto Shakespeare quanto Machado jamais pisaram na universidade. Uma informação com várias interpretações possíveis.

Ainda sou novo demais para observar com nitidez a imensidão de Machado. Também sou muito novo para, como diz o Karnal, “a melancolia do príncipe”4. Mesmo assim uma preocupação me assola: estamos reduzindo a maestria literária à chatice. Não quer dizer que autores contemporâneos desmereçam atenção e valor. Mas o aconchego de um clássico ou de um livro escrito por um grande homem deve ser despido do peso tedioso que nele colocamos e do nosso desprezo por ele. Há muita preciosidade literária esperando para ser consumida! Há um tesouro nas letras esperando para ser encontrado! Temos bússolas ambulantes (muitas vezes denominadas professores) responsáveis por despertar nos alunos a descoberta desse tesouro. Mas não estão amarradas as mãos dessas bússolas com uma certa "burocracia do saber"?
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1. Leandro Karnal – Lembrar e esquecer ou a vida entre Dory e Funes: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,lembrar-e-esquecer-ou-a-vida-entre-dory-e-funes,10000065791
2. Carlos Drummond de Andrade – A falta de Erico Verissimo: http://www.universitario.com.br/noticias/n.php?i=16407 
3. Hamlet de Shakespeare e o Mundo como Palco: https://vimeo.com/126262380
4. Leandro Karnal (postagem no Facebook de 28/03/2016): https://www.facebook.com/prof.leandrokarnal/photos/pb.1603132246595808.-2207520000.1459413682./1696772277231804/?type=1&theater